Até que ponto o ser humano pode ir para ter justiça? A justiça não é uma forma de vingança?
Carne de Segunda é o meu primeiro romance e abaixo publico o primeiro capítulo para que vocês possam degustar. Boa leitura!
I
A Fazenda
O carro de polícia avança em velocidade média levantando uma
nuvem de poeira. O calor nessa hora do dia, quase meio-dia, é asfixiante e
incomoda bastante.
Pela estrada de terra passam muitos caminhões e até uma linha
de ônibus que, em horários irregulares, ajuda a cobrir com uma grossa camada de
poeira toda a vegetação que cresce sem qualquer cuidado.
Chegando a uma encruzilhada, o policial que conduz o veículo
para como se estivesse indeciso sobre qual sentido tomar. Mas, logo em seguida,
opta por seguir pela direita, furando uma nuvem de poeira levantada por um
caminhão que acabou de passar em direção oposta. As janelas abertas permitem
que a poeira entre e cubra o painel do carro com uma camada de pó avermelhada,
assim como os uniformes dos policiais.
Depois de rodar por cerca de dez quilômetros, eles avistam o
que parece ser uma estreita rua saindo à esquerda da via principal. Não é
possível ver se é muito longa, pois ela some numa pequena curva. A viatura
avança devagar. São muitos os buracos e não há espaço suficiente para fugir
deles. Ao saírem de uma curva, depois de avançarem uns três quilômetros, sob
grande e frondosa árvore, um garoto descansa ao lado de sua bicicleta bastante usada.
A viatura se aproxima, e o menino não faz qualquer menção de surpresa. Continua
sentado, mastigando um pedaço de capim seguro por entre os dedos. Ele tem na
cabeça um chapéu de palha igualmente gasto, veste uma camiseta amarela onde se
lê no peito “ALEMANHA 2006”, um short surrado de Tactel na cor vermelha e calça sandálias do tipo Havaianas que lhe
deixam os dedos dos pés cobertos de poeira. O veículo para ao seu lado na
sombra da árvore. O policial que vai ao volante inicia o diálogo.
− Você mora por aqui?
− Moro sim.
− Tem algum matadouro abandonado pelas redondezas?
− Não sei...
− Fazenda Boa Esperança é
por aqui?
− É sim, fica logo depois da ponte. Tem uma porteira do lado
esquerdo, mas não tem ninguém por lá...
− Tudo bem...
Como se essas palavras fossem uma despedida, o veículo segue em
frente desviando-se dos buracos, quase arranhando a lateral no arame farpado
que cerca as propriedades abandonadas. O carro ganha velocidade em um declive suave
que finda numa pequena ponte sobre um córrego estreito, quando a estrada começa
a subir e fica plana novamente. Logo depois da ponte, os policiais avistam a
porteira. Está fechada com uma corrente enferrujada que dá voltas em um dos
mourões. Em um dos elos, pendurado, um cadeado fechado que
provavelmente há muito tempo não é aberto e sem qualquer serventia, pois não perpassa por
outro elo. Ao lado da porteira, eles avistam um quebra-costela, uma pequena
passagem enviesada que permite apenas a passagem de gente. É tão estreita que
um animal que tente passar ficará preso.
Os policiais saem do carro, empunham as suas armas, passam
pelo quebra-costela e avançam pelo matagal que cobre a entrada da fazenda. Tudo
ali é silêncio, somente quebrado pelo barulho dos pássaros. Começa a correr um
vento suave, agitando as árvores. Os policiais estão tensos, seguem devagar,
procurando não fazer barulho para não serem notados. Uma preocupação inútil.
No fim do caminho, avistam o que seria a casa principal. Não é
uma fazenda em
estilo colonial. Parece uma casa comum, dessas da cidade. A
frente é formada por quatro pequenas janelas e uma porta, de madeira e pintadas
de azul-escuro, todas fechadas. A construção − melhor tratá-la assim − está
pintada de branco com marcas de lodo ou musgo em algumas paredes. Não há animal
algum por perto. Um dos policiais faz sinal ao outro para que rodeiem a
construção, cada um por um lado, e assim o fazem. Ao se encontrarem do outro
lado da edificação deparam-se com outras construções.
Encostados à pequena porta de madeira enxergam o que está em
volta num raio de 180 graus. Afastada da casa há uma pequena pocilga. Mais
afastado, eles veem uma espécie de galpão coberto de telhas de cerâmica,
algumas já bastante envelhecidas, cercado com uma meia parede que, em alguns
pontos, mostra tijolos descobertos pela queda do reboco. À direita, avistam uma
edificação que bate com a descrição que lhes foi passada, pintada de branco e
com telhado feito de laje. O matagal quase a encobre totalmente. Um caminho
estreito parece indicar a entrada. Eles avançam devagar, armas em punho,
atentos a qualquer movimento estranho. O sol forte empapa-lhes a testa com o
suor abundante que teima em lhes cair sobre os olhos. Aos poucos, a edificação vai
surgindo diante deles. É como uma caixa de concreto, sem, janelas, somente uma
porta de metal. Os dois policiais se aproximam e colam os corpos na parede
áspera. Um deles faz sinal para que se encontrem nos fundos. Ato contínuo, cada
um vai para um lado, avançando com cuidado extremo. Ao chegarem ao final da
parede param e colocam somente parte da cabeça para espiar o movimento.
Voltam-se um para o outro; ambos fazem sinal de que está tudo bem e vão
avançar. Eles o fazem observando todos os movimentos, atentos a ruídos
estranhos. Ao se encontrarem nos fundos e sem ter encontrado nada de estranho,
encostam-se na parede dos fundos tentando se proteger do sol escaldante. Um
deles tira uma toalha pequena, de cor branca, do bolso traseiro da calça e
enxuga o suor que lhe escorre pelo pescoço.
Combinam por sinal que voltarão para frente, pelo mesmo lado
que foram. Chegando à porta da frente verificam que ela não está trancada.
Cautelosamente, empurram-na; esta se abre emitindo um pequeno rangido de ferro
roçando sobre ferro. Dentro está escuro, ainda mais para olhos habituados com a
claridade intensa do meio-dia. Posicionam-se de um lado da porta, protegidos
pela parede, à espera de algum tipo de reação que possa vir de dentro, mas nada
acontece.
− É a policia! – soltam um grito em uníssono, à espera de uma
resposta qualquer ou uma reação violenta, mas o silencio persiste.
Resignados, eles entram, um de cada vez, na construção. Piscam
os olhos para se acostumarem com a escuridão, e o interior se desnuda para eles
em meio à penumbra. Um cheiro forte de carne podre inunda-lhes as narinas, e
eles levam as mãos ao nariz para tentar não aspirar a podridão. Não há móveis,
exceto uma cadeira tombada no centro de um grande salão. As paredes internas são
cobertas até o teto por azulejos brancos, assim como o piso. No alto da parede
corre um trilho com alguns ganchos para pendurar carne, desses vistos em
açougues. O local parece ser um abatedouro de animais, e eles sentem um
calafrio lhes percorrer a espinha.
Agora, com os olhos totalmente acostumados com a penumbra reinante
no local, eles avançam para os fundos. Ao seguirem com os olhos o trilho no
alto da parede paralisam, ao mesmo tempo que têm ânsia de vômito.
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