quarta-feira, 30 de maio de 2012

Até que ponto o ser humano pode ir para ter justiça? A justiça não é uma forma de vingança?
Carne de Segunda é o meu primeiro romance e abaixo publico o primeiro capítulo para que vocês possam degustar. Boa leitura!

I

A Fazenda

O carro de polícia avança em velocidade média levantando uma nuvem de poeira. O calor nessa hora do dia, quase meio-dia, é asfixiante e incomoda bastante.
Pela estrada de terra passam muitos caminhões e até uma linha de ônibus que, em horários irregulares, ajuda a cobrir com uma grossa camada de poeira toda a vegetação que cresce sem qualquer cuidado.
Chegando a uma encruzilhada, o policial que conduz o veículo para como se estivesse indeciso sobre qual sentido tomar. Mas, logo em seguida, opta por seguir pela direita, furando uma nuvem de poeira levantada por um caminhão que acabou de passar em direção oposta. As janelas abertas permitem que a poeira entre e cubra o painel do carro com uma camada de pó avermelhada, assim como os uniformes dos policiais.
Depois de rodar por cerca de dez quilômetros, eles avistam o que parece ser uma estreita rua saindo à esquerda da via principal. Não é possível ver se é muito longa, pois ela some numa pequena curva. A viatura avança devagar. São muitos os buracos e não há espaço suficiente para fugir deles. Ao saírem de uma curva, depois de avançarem uns três quilômetros, sob grande e frondosa árvore, um garoto descansa ao lado de sua bicicleta bastante usada. A viatura se aproxima, e o menino não faz qualquer menção de surpresa. Continua sentado, mastigando um pedaço de capim seguro por entre os dedos. Ele tem na cabeça um chapéu de palha igualmente gasto, veste uma camiseta amarela onde se lê no peito “ALEMANHA 2006”, um short surrado de Tactel na cor vermelha e calça sandálias do tipo Havaianas que lhe deixam os dedos dos pés cobertos de poeira. O veículo para ao seu lado na sombra da árvore. O policial que vai ao volante inicia o diálogo.
− Você mora por aqui?
− Moro sim.
− Tem algum matadouro abandonado pelas redondezas?
− Não sei...
− Fazenda Boa Esperança é por aqui?
− É sim, fica logo depois da ponte. Tem uma porteira do lado esquerdo, mas não tem ninguém por lá...
− Tudo bem...
Como se essas palavras fossem uma despedida, o veículo segue em frente desviando-se dos buracos, quase arranhando a lateral no arame farpado que cerca as propriedades abandonadas. O carro ganha velocidade em um declive suave que finda numa pequena ponte sobre um córrego estreito, quando a estrada começa a subir e fica plana novamente. Logo depois da ponte, os policiais avistam a porteira. Está fechada com uma corrente enferrujada que dá voltas em um dos mourões. Em um dos elos,   pendurado, um cadeado fechado que provavelmente há muito tempo não é aberto e  sem qualquer serventia, pois não perpassa por outro elo. Ao lado da porteira, eles avistam um quebra-costela, uma pequena passagem enviesada que permite apenas a passagem de gente. É tão estreita que um animal que tente passar ficará preso.
Os policiais saem do carro, empunham as suas armas, passam pelo quebra-costela e avançam pelo matagal que cobre a entrada da fazenda. Tudo ali é silêncio, somente quebrado pelo barulho dos pássaros. Começa a correr um vento suave, agitando as árvores. Os policiais estão tensos, seguem devagar, procurando não fazer barulho para não serem notados. Uma preocupação inútil.
No fim do caminho, avistam o que seria a casa principal. Não é uma fazenda em estilo colonial. Parece uma casa comum, dessas da cidade. A frente é formada por quatro pequenas janelas e uma porta, de madeira e pintadas de azul-escuro, todas fechadas. A construção − melhor tratá-la assim − está pintada de branco com marcas de lodo ou musgo em algumas paredes. Não há animal algum por perto. Um dos policiais faz sinal ao outro para que rodeiem a construção, cada um por um lado, e assim o fazem. Ao se encontrarem do outro lado da edificação deparam-se com outras construções.
Encostados à pequena porta de madeira enxergam o que está em volta num raio de 180 graus. Afastada da casa há uma pequena pocilga. Mais afastado, eles veem uma espécie de galpão coberto de telhas de cerâmica, algumas já bastante envelhecidas, cercado com uma meia parede que, em alguns pontos, mostra tijolos descobertos pela queda do reboco. À direita, avistam uma edificação que bate com a descrição que lhes foi passada, pintada de branco e com telhado feito de laje. O matagal quase a encobre totalmente. Um caminho estreito parece indicar a entrada. Eles avançam devagar, armas em punho, atentos a qualquer movimento estranho. O sol forte empapa-lhes a testa com o suor abundante que teima em lhes cair sobre os olhos. Aos poucos, a edificação vai surgindo diante deles. É como uma caixa de concreto, sem, janelas, somente uma porta de metal. Os dois policiais se aproximam e colam os corpos na parede áspera. Um deles faz sinal para que se encontrem nos fundos. Ato contínuo, cada um vai para um lado, avançando com cuidado extremo. Ao chegarem ao final da parede param e colocam somente parte da cabeça para espiar o movimento. Voltam-se um para o outro; ambos fazem sinal de que está tudo bem e vão avançar. Eles o fazem observando todos os movimentos, atentos a ruídos estranhos. Ao se encontrarem nos fundos e sem ter encontrado nada de estranho, encostam-se na parede dos fundos tentando se proteger do sol escaldante. Um deles tira uma toalha pequena, de cor branca, do bolso traseiro da calça e enxuga o suor que lhe escorre pelo pescoço.
Combinam por sinal que voltarão para frente, pelo mesmo lado que foram. Chegando à porta da frente verificam que ela não está trancada. Cautelosamente, empurram-na; esta se abre emitindo um pequeno rangido de ferro roçando sobre ferro. Dentro está escuro, ainda mais para olhos habituados com a claridade intensa do meio-dia. Posicionam-se de um lado da porta, protegidos pela parede, à espera de algum tipo de reação que possa vir de dentro, mas nada acontece.
− É a policia! – soltam um grito em uníssono, à espera de uma resposta qualquer ou uma reação violenta, mas o silencio persiste.
Resignados, eles entram, um de cada vez, na construção. Piscam os olhos para se acostumarem com a escuridão, e o interior se desnuda para eles em meio à penumbra. Um cheiro forte de carne podre inunda-lhes as narinas, e eles levam as mãos ao nariz para tentar não aspirar a podridão. Não há móveis, exceto uma cadeira tombada no centro de um grande salão. As paredes internas são cobertas até o teto por azulejos brancos, assim como o piso. No alto da parede corre um trilho com alguns ganchos para pendurar carne, desses vistos em açougues. O local parece ser um abatedouro de animais, e eles sentem um calafrio lhes percorrer a espinha.
Agora, com os olhos totalmente acostumados com a penumbra reinante no local, eles avançam para os fundos. Ao seguirem com os olhos o trilho no alto da parede paralisam, ao mesmo tempo que têm ânsia de vômito.
 Pendurado no trilho por dois ganchos que parecem suspendê-lo pelas costas está o corpo de um homem moreno, de aproximadamente 35 anos, quase sem roupas. No chão há uma poça de sangue que aparentemente escorreu de seu corpo. Ao saírem do estado de torpor que se apoderou de seus corpos, eles se viram e saem apressados, tapando a boca para não vomitarem ali mesmo. Em seus muitos anos como policiais já viram de quase tudo, mas nunca uma cena como essa. Alguém pendurara um corpo como se pendura um quarto de boi nos açougues para desossar e o esquecera sem executar o serviço.